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sábado, fevereiro 3


Quem É?

Sentada em frente ao ecrã, a responder a uns e-mails e a preparar a agenda para amanhã… Sim, porque se sou escrava de alguma coisa é da minha agenda, escrevo, faço!... toca o telefone… atendo como de costume… Soluções de Imagem bom dia…
- Bom dia, desejava falar com a Andreia
- De momento não está, posso ajudar? Quer que transmita alguma mensagem?
- Diga-lhe que telefonou o Engº Alfredo e que entre em contacto comigo.


Pousei o telefone, olhei para o lado, torci o nariz e mergulhei de novo no que estava a fazer. Vou despachar-me, rápido rápido, porque vou almoçar com a minha mãe e os nossos almoços prolongam-se por conversas e atalhos para sonhos, possibilidades intermináveis e gargalhadas. Assim, esta tarde posso ser só a filha dela.
Enquanto espero por ela, bebo um café, caminho até à janela e perco o meu olhar no movimento da rua. O meu pensamento foge para o telefonema de há pouco. Como é que alguém se atreve a identificar-se a si próprio como Engenheiro, ou Dr.?
Pareceu-me ao mesmo tempo uma designação breve e sem significado concreto.
Toca o telemóvel e de novo volto à realidade palpável, deixando em aberto os intocáveis pensamentos.
- Estou, Bom diaaaa
- Oi Rita, preciso que me dês o contacto da tua prima para marcarmos um encontro.
Está tudo bem contigo? Agora estou super à pressa, vou falar com Ana.
- Ana? Quem é a Ana?
- É a directora de comunicação e imagem da revista.
- Beijinhos diverte-te, até logo.
Passam-me outra chamada…
- Boa tarde, fala a secretária do Dr. João, queria confirmar a sua consulta para amanhã.
- Confirmado!

Quando começamos a reparar num pormenor, as coisas tornam-se repetitivas.

Até agora, eu sou escrava de um hábito que eu própria criei, falei com alguém que é engenheiro, pediram-me o contacto de alguém que é minha prima, alguém vai falar com a directora de uma revista, confirmei a minha consulta com alguém que é secretária de alguém que é médico e eu vou almoçar com a minha mãe.
E já agora, que é este eu?

Confuso? Um bocadinho. Por isso, decidi que ia pensar sobre isto talvez depois de almoçar.

Apercebi-me que classificamos a maioria das pessoas pelo trabalho que têm ou pelo relacionamento que temos com elas e elas são isso para nós.
Parece-me pouco…

Tudo isto levou-me a querer reflectir sobre o que é uma pessoa?
Uma pessoa é igual ao papel que desempenha numa sociedade?
E é só isso?
Uma pessoa é só Mãe, Arquitecta, Engenheira ou directora?
Não pode ser!
Comecei por “meter-me” na minha própria pele para sentir quem Sou.

Eu tenho várias actividades profissionais. Há umas em que me visto de uma forma mais clássica, falo de uma determinada maneira, noutras sou drástica, noutras mais permissiva, numas tenho um ar sério, noutras um ar mais descontraído. A nível dos relacionamentos, a mesma coisa.
Há relacionamentos em que sou impossível de aturar, noutros desmonto-me a rir e faço palhaçadas, noutros mergulho de olhos fechados.
Porquê? Sou várias pessoas numa embalagem só?
E quando esses “papéis” se misturam? As coisas complicam-se. Como é que interajo com a mesma pessoa em contextos diferentes?
Amigos e negócios, por exemplo. Amigos, amigos, negócios à parte? É mesmo assim?
Como é que faço para gerir esta incongruência de comportamentos?
Fico com a sensação, de que a outra pessoa vai ficar um pouco baralhada ou espantada, ao conhecer-me de outra perspectiva. Eu não me comporto da mesma forma quando estou sentada à minha secretária ou quando vou sair à noite com amigos. Não falo da mesma maneira, nem sequer tenho os mesmos objectivos.
O que poderei eu fazer, para anular essa incongruência para que, em vez de me limitar, me acrescente valor?
Eu apercebi-me disto, aí por volta dos 12 anos, talvez um pouco tarde, não sei. A estratégia que utilizei na altura para fazer esta gestão, foi, não misturar as pessoas que conhecia na escola com as que conheci nas aulas de dança, com as que conheci no café do meu bairro, com as que conheci no cabeleireiro, com as que conheci na piscina, com as que conheci por intermédio dos meus pais, com as que conheci através de outros amigos. Mas isto, não funciona! Para além disso, é ridículo e causa alguns problemas internos de identidade, confesso.
Quem sou eu? Eu, não sou várias pessoas, não sou várias identidades, sou uma! Comporto-me de diferentes formas em diferentes contextos, o que agora me parece normal.

No fim do dia, fui a um concerto de música clássica onde devemos comparecer, com roupa clássica. Mas, como estive a trabalhar como Rita estilo mais informal e não tive tempo para mudar de roupa, a sintonia com os restantes espectadores era mínima. Estava desenquadrada.
Muitas vezes, as pessoas também são para nós, a aparência que têm e este facto é tão limitante.
Quem sou eu para estas pessoas e quem são elas para mim?


Descascando mais uma camada da cebola…

“Penso logo existo”. Se existimos, somos. Somos… Leva-me para atalhos de outras frases feitas…
Somos o que comemos. Somos o que bebemos. Somos o que pensamos.
E se eu me conseguir concentrar, ao ponto de não pensar? Não existo? Não sou?
Somos um corpo com determinadas características genéticas e um ADN único e inigualável. E isto, ainda por cima deve-se a um acaso fantástico condicionado pelo espaço, pelo tempo ou pela paixão. Só por um acaso, eu sou como sou, só por um acaso, não sou do teu sangue.
Sou uma pessoa com determinados valores, sonhos, pensamentos, conhecimentos que contribuem para que me relacione assim com o Mundo.
Este ADN, estes conhecimentos, sentimentos, valores, parecem ser a única coisa que faz parte de todo o conjunto. É como que um conjunto de intercepção.
Então eu sou isso, essa intercepção.
Quem sou eu?
Se pensar ainda no facto, de que posso mudar ao longo do tempo ou neste mesmo instante, transformar-me-ei noutra pessoa?
E se eu mudar para outra profissão, deixo de ser Eu?
Serei a mesma pessoa de ontem, de hoje e de amanhã?
E ontem, vias-me da mesma forma que hoje?
E o que te fez mudar de opinião? A minha impaciência durante esta semana louca?
As poucas horas que dormi e que contribuíram para ficar com estas olheiras?
O pouco tempo que tive para falar contigo ou para te telefonar?
A minha roupa nova?
O profissionalismo a atender o telefone ou a tratar da tua encomenda?
O presente que te dei no Natal?
A perspectiva daquilo que sonhamos juntos para o futuro?
A minha bainha descaída?
O meu sorriso constante?
A falta de verniz nas unhas?
As férias que passámos juntos?
O e-mail que te enviei?
O frio que está e o SOL que fez?
A cor nova da parede?
A sala desarrumada?
O bilhete que te escrevi? O poema que te li?
O abraço comprometido?
O sonho partilhado?
O meu ar de resmungona só porque não encontro o meu telemóvel em banda nenhuma?
O que acabei de escrever?
Quem és tu?

Pareceu-me lógico terminar com um poema de Fernando Pessoa

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és

No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.